segunda-feira

Lembranças voláteis eventualmente retornam


Este conto é especialmente dedicado àqueles que acham que as pessoas de antigamente eram sérias, sóbrias e recatadas o tempo todo, quase que sisudas e em tons sépia. Até eram. Mas nem sempre...

Dentre tantas lembranças de sua tenra infância, uma em especial - absurda! - lhe vem à mente, de repente, sem aviso. Certa vez lhe disseram que a vida é feita de "nadas", que é aí que está a beleza de viver. Não sabia bem ao certo porque aquilo voltara à sua memória, mas tinha certeza que aquele era um "nada" que lhe trazia à presença seu riso solto e verdadeiro de criança... 

... ou melhor, sabia sim! Ele acabara de passar de carro pelas redondezas - quase nove décadas mais tarde - e a casa já não estava mais lá. Mas a lembrança de tudo o que representava estava muito acesa e o fazia explodir, por dentro, em uma gargalhada repleta de imagens e sons.

Nos anos 1920, tinha apenas 6 para 7 anos e, como filho mais velho, era o companheiro de seu pai em todas as jornadas. Seu pai era professor. O primeiro da pequena cidade de interior. Sua escola ficava no centro da localidade. Mas há 12 km existia uma comunidade inteira ávida de saber e sem condições de percorrer o longo trajeto. Como a família possuía uma carroça, quem se deslocava era "papai". E ele ia junto. E assim sucedeu dias, semanas, meses. Até que papai fez amizade com os pais dos alunos locais. A partir daí, os dias ficaram mais longos e a volta para casa retardada para horários um pouco mais avançados... E como aquele pequeno gostava de ficar brincando com as crianças da região! Os adultos jogavam cartas, conversavam bobagens, riam alto, comiam, bebiam, alegres. As crianças, em volta, ocupavam-se de suas brincadeiras. Foi uma época boa que voltou-lhe como um filme à memória.

Com um carinho todo especial, lembrou-se dos primos Spengler - Antônio e Alberto, que não podiam se ver que já estavam fazendo palhaçadas. Os dois não podiam ficar sérios e nem deixar ninguém à sua volta de cara amarrada. E, naquele dia, em especial, sentados à mesa e jogando com papai, as crianças deleitaram-se com sua performance absolutamente gasosa e inusitada.

Decidiram, os primos, que iriam fazer um campeonato de peidos (não consegui achar uma palavra mais polida para a história que descreverei a seguir, desculpem!). Anunciaram solenemente, o início da competição. E Alberto tomou a liderança. E Antônio não deixou barato. Jogaram mais uma rodada do carteado. Desta vez foi Antônio que desafiou. E Alberto seguiu-o, prontamente. E o jogo continuava rolando até que Antônio juntou toda sua força interior para confrontar o primo. E subiu no banco, apontando Alberto em tom jocoso: "Ahá! Perdeu!!!" Foi então que, neste momento, Alberto jogou as cartas na mesa, respirou fundo, subiu na mesa e gritou "Coroem agora o seu rei!". A cena a seguir virou lenda urbana e é um misto de surrealismo e incredulidade que marcaram para todo o sempre sua jornada por esta Terra...

Tanta coisa boa para lembrar dos primos Spengler - rapazes trabalhadores, com seus engenhos de açúcar, boníssima gente, amigos de verdade, comprometidos com sua comunidade... de tantas memórias construtivas e de admiração... é justamente esta noite flatulenta que lhe volta à mente - de repente... entre tantas outras imagens... foi aquela a eleita para emergir depois de 85 anos, diretamente de sua infância dourada.

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Lembranças voláteis eventualmente retornam


Este conto é especialmente dedicado àqueles que acham que as pessoas de antigamente eram sérias, sóbrias e recatadas o tempo todo, quase que sisudas e em tons sépia. Até eram. Mas nem sempre...

Dentre tantas lembranças de sua tenra infância, uma em especial - absurda! - lhe vem à mente, de repente, sem aviso. Certa vez lhe disseram que a vida é feita de "nadas", que é aí que está a beleza de viver. Não sabia bem ao certo porque aquilo voltara à sua memória, mas tinha certeza que aquele era um "nada" que lhe trazia à presença seu riso solto e verdadeiro de criança... 

... ou melhor, sabia sim! Ele acabara de passar de carro pelas redondezas - quase nove décadas mais tarde - e a casa já não estava mais lá. Mas a lembrança de tudo o que representava estava muito acesa e o fazia explodir, por dentro, em uma gargalhada repleta de imagens e sons.

Nos anos 1920, tinha apenas 6 para 7 anos e, como filho mais velho, era o companheiro de seu pai em todas as jornadas. Seu pai era professor. O primeiro da pequena cidade de interior. Sua escola ficava no centro da localidade. Mas há 12 km existia uma comunidade inteira ávida de saber e sem condições de percorrer o longo trajeto. Como a família possuía uma carroça, quem se deslocava era "papai". E ele ia junto. E assim sucedeu dias, semanas, meses. Até que papai fez amizade com os pais dos alunos locais. A partir daí, os dias ficaram mais longos e a volta para casa retardada para horários um pouco mais avançados... E como aquele pequeno gostava de ficar brincando com as crianças da região! Os adultos jogavam cartas, conversavam bobagens, riam alto, comiam, bebiam, alegres. As crianças, em volta, ocupavam-se de suas brincadeiras. Foi uma época boa que voltou-lhe como um filme à memória.

Com um carinho todo especial, lembrou-se dos primos Spengler - Antônio e Alberto, que não podiam se ver que já estavam fazendo palhaçadas. Os dois não podiam ficar sérios e nem deixar ninguém à sua volta de cara amarrada. E, naquele dia, em especial, sentados à mesa e jogando com papai, as crianças deleitaram-se com sua performance absolutamente gasosa e inusitada.

Decidiram, os primos, que iriam fazer um campeonato de peidos (não consegui achar uma palavra mais polida para a história que descreverei a seguir, desculpem!). Anunciaram solenemente, o início da competição. E Alberto tomou a liderança. E Antônio não deixou barato. Jogaram mais uma rodada do carteado. Desta vez foi Antônio que desafiou. E Alberto seguiu-o, prontamente. E o jogo continuava rolando até que Antônio juntou toda sua força interior para confrontar o primo. E subiu no banco, apontando Alberto em tom jocoso: "Ahá! Perdeu!!!" Foi então que, neste momento, Alberto jogou as cartas na mesa, respirou fundo, subiu na mesa e gritou "Coroem agora o seu rei!". A cena a seguir virou lenda urbana e é um misto de surrealismo e incredulidade que marcaram para todo o sempre sua jornada por esta Terra...

Tanta coisa boa para lembrar dos primos Spengler - rapazes trabalhadores, com seus engenhos de açúcar, boníssima gente, amigos de verdade, comprometidos com sua comunidade... de tantas memórias construtivas e de admiração... é justamente esta noite flatulenta que lhe volta à mente - de repente... entre tantas outras imagens... foi aquela a eleita para emergir depois de 85 anos, diretamente de sua infância dourada.

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