sexta-feira

Projeto em andamento...

... que anda meio paradinho por várias questões pessoais e profissionais... é uma pena... mas logo quero ver se consigo retomá-lo... Isso porque tenho uma caixa cheinha de contos já prontos só aguardando serem publicados aqui e outras tantas páginas com anotações e mais anotações de memórias, nomes, causos e histórias fantásticas que - juro! - aconteceram! Assim que for possível, novas postagens serão feitas aqui... mas por enquanto... divirta-se com as já publicadas! Um abração, Bethania

quinta-feira

Uma homenagem a minha cidade

*** Sei que este post foge um pouco do foco/propósito deste blog... Mas a homenagem que produzimos para a RBS TV neste aniversário de Blumenau ficou tão bonita que merecia ser compartilhada. 

Música by Banda Cavalinho / Produção: Spry Vídeo / Texto: Bethania Guenther / Veiculação: RBS TV -- veja este post também no site www.spryvideo.com

Que cidade é essa que nasceu das mãos abnegadas que lenta e penosamente semearam tenacidade, empreendedorismo e energia, vislumbrando um amanhã digno e promissor para sua prole?

Que cidade é essa, voltada para a inovação, que implantou as primeiras indústrias, que trabalhou, incansável, fugazes planos... que perseguiu objetivos, que fez sua voz soar mais alto, que viu suas vielas transformarem-se em avenidas e que aprendeu a fazer a diferença?

Que cidade é essa, lavada pelas águas que, castigada, não esmoreceu... ao contrário, reconstruiu-se, redescobriu-se, reinventou-se e plantou nos que testemunharam, incrédulos, mais um duro golpe sofrido, a semente da persistência, da esperança e da solidariedade entre os homens?

Que cidade é essa, que ergue-se no Vale, com jeitinho de Europa, com ares de amor à primeira vista, que preseva a ferro e fogo as delícias da casa da vovó - a melodia, o canto, os ritmos, as cores, os cheiros, o abraço apertado, a própria identidade: tradição com pinceladas de vida moderna. Gostosa. Charmosa. Culta. Inesquecível. De braços abertos?

Que cidade é essa, do povo batalhador... loiro, castanho, mulato, amarelo... que vive e sobretudo convive, acolhendo todas as raças e credos, priorizando a harmonia... que chora unido, que brinca, que sorri, que brilha, vencedor e ilumina e emociona?

Que cidade é essa, única, úmida, ímpar, plural... onde o coração pulsa mais alto?

Essa, minha gente, é a minha cidade... encantada... da curva do rio... da natureza sem igual... da beleza exuberante, estonteante, cativante!

Essa é a minha cidade. Minha multicolor e multiamor... Blumenau!

terça-feira

Tempos modernos - e chega o cinema


O cinema já havia sido inventado há algum tempo, mas cidadezinhas de interior de um país recém colonizado não eram exatamente os primeiros lugares em que a modernidade costumava aportar. (Embora possa-se dizer aliviado que "antes tarde que mais tarde"!)

O Sr. Holzwarth foi pioneiro em trazer seu cinema itinerante para diversas comunidades da região. E sempre que chegava a sua caravana, a cidade entrava em festa! Pessoas curiosas ansiavam por ver como era aquilo que tantos falavam, alguns receosos pelo que estariam prestes a testemunhar, enquanto outros praguejavam a captura da alma das pessoas por aquela máquina. 

Naquela época, os "enlatados" que o senhorio trazia eram os bang-bangs. E, como os filmes eram mudos, era costume contratar músicos da localidade para fazer um fundo musical para a película.

Papai apressou-se em oferecer seus préstimos e de seu filho para tocarem violino nas sessões. Garantiu ao Sr. Holzwarth que, apesar dos 10 anos recém completados, ele era um excelente violinista. E, de fato, era. Pois se tinha uma coisa que papai ensinara-lhe bem era como encantar as pessoas com seu violino companheiro. E conseguira, assim, seu primeiro emprego: como violinista nas sessões do cinema itinerante.

Três, dois, um. Trouxeram um repertório bem organizado de marchinhas e valsas - que era o que se tocava nos westerns da época. (!) E puseram-se os dois a tocar para uma plateia repleta. A primeira canção, a segunda... e as primeiras imagens começaram a surgir na tela: o menino maravilhou-se com a coisa mais bonita que já vira na vida. Boquiaberto, petrificado, sem ação, absolutamente entregue, ele estava hipnotizado. Logo sentiu um cutucão do pai, trazendo-o de volta à realidade. Novas notas, nova música.. e logo tinha atrasado novamente o compasso até que seu violino, mais uma vez, emudeceu. E ele ali, encantado com o que via. Ouviu alguma coisa ao fundo, como um sussurro ríspido, meio confuso e abafado, mas não conseguia prestar atenção em som algum, mirava apenas naquelas imagens que pareciam estar em câmera lenta, parecia que só havia ele e a tela no salão, tamanha a sua beleza e poesia.

Voltou a si quando percebeu que o sussurro ríspido e abafado era na verdade o Sr. Holzwarth bufando em seu cangote, distituindo-o em definitivo do cargo de violinista de cinema itineirante. 

E foi assim que, além do seu primeiro emprego, conseguira, também, a sua primeira demissão!

quinta-feira

A cordialidade no seu sentido bíblico


A noite estava bela e iluminada por uma lua cheia de rostos sorridentes, histórias absurdas e acordes de músicas alegremente entoados entre copos de cerveja que tilintavam à saúde dos presentes. Como eram agradáveis os encontros entre amigos!

Voltavam os recém-casados, faceiros, para sua bela casa adquirida há pouco. Pé ante pé, abraçados, cantavam as marchinhas de outrora e riam-se, despreocupados. Como eram agradáveis os encontros entre amigos!

A porta da frente entreaberta fez um frio descer-lhes a espinha. Entreolharam-se, sérios. A alegria tornara-se apreensão. Fez sinal para que ela fizesse silêncio e ficasse do lado de fora, aguardando seu sinal. Pé ante pé, cuidadosamente, fiscalizou cada cômodo da casa, atônito com a situação que vivia naquele momento. Ouviu passos. E seguiu-os, corajosamente até o andar de baixo. Escondeu-se atrás do batente da porta. Iria surpreender o invasor: "Mas como?", pensou, já que não tinha nada nas mãos ou ao alcance delas. "Seja o que Deus quiser!", suspirou consigo. Agora estavam perto! E mais perto! Os passos! Estavam vindo em sua direção! Tomou fôlego e subitamente, saiu gritando raivoso em direção ao barulho. "Aaaaaaaaaaaaaaah!", seguido de um grito histérico feminino. 

Ela não aguentara o medo de ficar lá fora sozinha... de mãos dadas, inspecionaram novamente os cômodos e perceberam que, apesar da bagunça, nada tinha sido levado. Já recompostos do choque aperceberam-se que, em cima da mesa da sala de jantar, estava um bilhete escrito a punho pelo ladrão. Dizia: "Não valeu a pena."

Entreolharam-se mais uma vez, incrédulos, respiraram fundo e soltaram uma gargalhada. Numa época em que a cordialidade e o cavalherismo contava e eram levados muito a sério, até assaltante tem a delicadeza de deixar um singelo bilhetinho antes de sua fuga.

domingo

A AHUA do Tio Alvin



O Tio Alvin foi para Florianópolis estudar odontologia. Formou-se dentista e casou-se com a Tia Érika. Todos gostavam dele, pois era muito bem-humorado – adorava uma bagunça! E gostava de dormir. Aliás, toda família tinha fama de Langschläflich (dorminhocos) desde sempre: enquanto vizinhos acordavam às 4h da manhã para iniciar as tarefas, ali nunca tinha ninguém acordado antes das 7. Fazendo jus à tradição familiar, às vezes, o paciente já estava aguardando no consultório enquanto a Tia Érika tinha dificuldades de acordá-lo.

Mas era um filho dedicado: vinha visitar os pais com bastante assiduidade, apesar da viagem penosa: saía de Mafra com sua família bem cedinho, pela manhã, e chegava a Pomerode somente à noite, viagem que hoje leva pouco mais de uma hora e meia. Em meados de 1940, comprou um Ford A. E, quando vinha, já buzinava escandalosamente desde lá de longe e, assim, os primos e sobrinhos pequenos já corriam para fora festejando sua chegada, gritando empolgadamente para os adultos: “Lá vem a AHUA do Tio Alvin!”. O apelido “Ahua” surgiu do som que a buzina que o automóvel fazia. Por ironia do destino, num fatídico dia 31 de dezembro, foi atropelado por uma “ahua” dirigida por três rapazes que festejavam o dia de São Silvestre (ano novo), em frente de casa – foi um dos maiores choques que a família já teve. A casa foi vendida em seguida, pois sua viúva não conseguia olhar para fora sem lembrar do acidente. 

Fatalidades e dramas familiares levam anos (ou gerações) para cicatrizar... mas as doces lembranças das gritarias e da alegria pela visita do Tio Alvin com sua AHUA ecoam reluzentes - e barulhentas - na memória de quem fica.

segunda-feira

Singelo como uma rosa roubada


Então ele veio ao Brasil. Fora chamado para trabalhar como professor na nova colônia. Juntamente com sua mãe viúva e sua irmãzinha, trouxe consigo poucas mudas de roupa, livros, nenhum dinheiro e a vontade de fazer uma vida digna na nova pátria. E assim o fez. Era agradável, solícito e dividia seu saber com toda a comunidade. E era reconhecido, muito bem-quisto e respeitado. Mas parecia faltar-lhe algo.

Foi aí que ele a viu pela primeira vez, quando pôs-se a participar de um seminário na cidade vizinha. Lá estava ela iluminada, ostentando aquele sorriso lindo enquanto cuidava de seus afazeres na casa onde era contratada. Parou, por um momento, de respirar. E passou muitas vezes na frente daquela janela, na esperança de vê-la novamente. E voltou à cidade inúmeras vezes na intenção de encontrá-la.

E ela passava os dias à janela à espera de sua visita. Nunca haviam se falado. Faltava coragem. Mas miravam-se longamente... Um dia ele não a encontrou e voltou para casa desapontado... mas não antes de pular a cerca, sacar uma rosa branca - roubada - do jardim e deixá-la na janela. Naquela janela, que emoldurava tão bela visão. E ela passou a esperar as rosas brancas, quando não conseguia vê-lo. E encantava-se. Sonhava. Suspirava.

E dos olhares (ou dos desencontros), iniciou uma belíssima história que se renova sempre e que não terá final jamais. Da singeleza das delicadas rosas deixadas ao parapeito da janela, nasceu toda uma família*. E, desta trajetória, fica o perfume do mais puro sentimento que brota sem aviso, tomando, de uma hora para outra todo nosso ser... na hora certa... quando tem que ser... dentro de cada um de nós.


*casaram-se em 1881 e hoje seu romance já alcança a 7a geração.

Escoteiro, herói!


Na década de 20/30, ser escoteiro era uma grande honra. Enquanto participavam do movimento, o rapazes da pequena cidade aprendiam sobre a sobrevivêcia na mata, tinham noções de civismo e vivenciavam em sua plenitude o compromisso com a comunidade na qual estavam inseridos. E ele, como bom escoteiro, tinha seu lenço, seu pavihão amado, que traduzia tudo o que de melhor o indivíduo podia ser. Acordava todos os dias de manhã e lá estava ele, pendurado à beira da cama. Quando uma boa ação fosse cumprida, fazia um nó no lenço. Era objetivo de todo escoteiro que, ao se deitar, seu lenço tivesse pelo menos um nó. E o dele tinha vários. E orgulhava-se muito disso.

Lembranças de um tempo de amizades, companheirismo e muitas, muitas aventuras... Um evento memorável, que parava sua cidadezinha, era o Raid, uma jornada na qual dois escoteiros tinham a honra de ir caminhando até a capital: uma prova de bravura, superação de limites e força de vontade dos participantes - afinal, são mais de 130 Km de chão batido, com uma mochila gigante nas costas. Por esta razão e por serem "os escolhidos" e não meros voluntários, já na ida, esses escoteiros eram tratados como celebridades. A cidade inteira participava de sua partida e reunia-se em salões paroquais para aguardar notícias. E elas vinham... o exército auxiliava os aventureiros, dando cobertura e telefonando para uma central na cidadezinha. E a pessoa que recebia as informações corria até o salão onde todos esperavam ansiosos pelas novas. Orações e muita torcida tomavam o espaço até o derradeiro telefonema: eles chegaram a Florianópolis! Chapéus para o alto, festa, comemoração. Os mais novos heróis da cidade agora poderiam voltar - de carro - para serem coroados com toda pompa e circunstância. E assim o eram. Quando em casa, eram ovacionados e seguiam em desfile público aos aplausos da multidão - eles eram os maiorais!

Este era um feito tão penoso e desafiador que era repetido somente a cada três anos, por anos a fio... até que a tradição passou a não acontecer mais. Faz parte de uma série feitos que, simplesmente, passaram... Passaram! Mas deixaram uma marca profunda. Porque, independentemente de participar da jornada ou ficar somente no aguardo de notícias... era um sofrimento absolutamente gratificante, aquele!!!

quarta-feira

O louco, a caderneta e o sussurro



Estava decidido. Era ela! Foi amor à primeira vista: na primeira vez que ouviu falar dela, quando foram apresentados, ao primeiro contato, desde a primeira vez que a adentrou. Tinha que ser ela. Estava decidido. Custasse o que custasse. Sacrifício, preocupação, dinheiro, dificuldades. Era ela! Seu superego dizia-lhe que era loucura, mas ele não dava bola. Só conseguia pensar - o tempo todo - nela. Seria sua. Mas... como?! (Àquela altura, isso era apenas um mero detalhe!)

Vestiu-se com seu melhor traje e foi reunir-se com o Sr. Smalz, da Construtora Catarinense. Faria-lhe uma proposta suicida. O depois não importava. E mergulhou. De cabeça. (Louco!)

- Tenho 9 nove contos de réis, pago-lhe à vista. O resto, pago aos poucos.

- Nós não financiamos. Preciso dos 25 contos agora.

- E eu, da casa. E ofereço os meus 9 contos como entrada.

Entreolharam-se, sérios. E o Sr. Smalz percebeu que aquele jovem teimoso não cederia. Via nele uma determinação desvairada em ter a propriedade no Beco Timbó, número 150. Respirou fundo e decidiu confiar no garoto. Avalizou pessoalmente o financiamento a ele, em prestações muito maiores que seu salário poderia cobrir. Entretanto ele, ensandecido pela possibilidade real de ter a casa, fechou negócio.

Saiu de lá radiante. Conseguira a casa. A sua casa. Digna de sua amada. Flores, luz, música, uma brisa suave batendo em seu rosto... Um lugarzinho para chamar de seu. Na qual teria uma vida inteira de muita felicidade. E de economia. E de sacrifício. E de preocupação. E de desespero! Pelo amor da Josefina! O que ele acabara de fazer?! Onde estava com a cabeça?! Como é que podia ter gasto suas economias de 10 anos de trabalho árduo e sobre-horas em uma casa que não podia comprar? Mas como ele tinha deixado se levar?! O que ele tinha feito!? E, se conseguisse pagar as prestações, como sustentaria a casa? E como sustentaria sua esposa? E seus filhos - aqueles que um dia teria com ela?! Sentou à beira da estrada e, simplesmente, chorou.

Rolou na cama por dias, não conseguira, ainda, sequer verbalizar o que tinha feito. E, numa epifania, eis que surgia de sei-lá-onde uma idéia que era tão absurda quanto a compra da casa. Decidiu tentar, esperançoso.

Comprou uma cadernetinha e uma caneta. E pôs-se a bater na porta dos vizinhos. Um a um. Explicava a situação e já traçava uma meta financeira. E desta forma foi conseguindo pequenos empréstimos - qualquer valor era bem-vindo - a serem pagos em longos prazos. E tudo foi anotado na cadernetinha. Clientes foram procurados com a mesma proposta - que era tão atrevida e inesperada que acabava convertida em mais cifras na caderneta. Em pouquíssimo tempo conseguira juntar 6 mil contos de réis, que já eram suficientes para cobrir as primeiras prestações. O sogro investiu no mobiliário completo da nova residência. Tudo do bom e do melhor para a primogênita - que, aos 27 anos, julgavam que não se casaria mais (em tempo: ela não gostou muito da escolha, pois a casa era grande demais e tinha muitas escadas, mas isso ele só ficou sabendo 50 anos mais tarde).

Trabalhou em horário dobrado, fez horas extras, arranjou empregos paralelos, candidatou-se para desempenhar pequenos trabalhos a quem precisasse. Foi pagando com bastante suor cada linha da lista - interminável. E as anotações da caderneta foram sendo riscadas uma a uma. (Ufa!)

No dia do casamento, seu pai fitava-o, orgulhoso. Em certo momento da festa, foi parabenizá-lo, abraçando-o longamente. E o inesperado aconteceu... Sussurrou em seu ouvido: "Te empresto os 12 mil contos que ainda faltam. Estou muito feliz de ver o homem que tu te tornaste. Honrado, esforçado, trabalhador. Assim tu não deves mais para ninguém e me pagas como podes, sem tanto sacrifício". E uma discreta lágrima escorreu-lhe pela face. Abraçaram-se, emocionados.

E foi assim que sua vida linda, florida e perfumada de homem casado começou: com a magia da salvação imprevista e com um abraço forte, com um significado todo especial. Seguiu anos economizando junto à esposa, sacrificando pequenos prazeres, com muita preocupação e alguma dificuldade. Mas pagaram cada prestação com um sorriso de gratidão no rosto.

E finalmente, a caderneta já não tinha mais uso. Mas foi guardada com carinho, como símbolo irrefutável de que, às vezes, podemos contar com a ajuda de pessoas que nem sequer em sonho imaginávamos... e que sempre estiveram lá, anonimamente, como expectadores, atentos e torcendo por nós. Tão perto e tão longe, bastando somente um chamado.

terça-feira

A primeira vez de um homem (parte 2)


Aos 16 anos, ele já trabalhava na loja de secos e molhados da Sra. Maria Cândida. E entre colocar o açúcar a secar ao sol e atender os clientes, ele acabara de ganhar uma nova atribuição: guardar o carro da patroa, ao final do dia, na garagem - que era um pouco afastada da vendinha. Aquilo seria o céu para aquele menino fascinado por automóveis. Estava ansioso pela sua primeira vez: ainda hoje ele teria um daqueles possantes em suas mãos só seu... mesmo que somente num pequeno espaço de tempo. Chegara o seu momento, aquele com o qual ele sonhara desde menino. E foi, heróico, cumprir a sua tarefa. Parou em frente ao lustroso e brilhante Ford A novinho e fitou-o longamente, absolutamente entorpecido pela beleza daquela máquina. Respirou fundo enquanto lembrava da conversa que teve pela manhã com a Dna. Mimi:

- Você tem certeza que pode? Sabe dirigir um carro?

- Com toda certeza! - respondera com segurança à patroa. (Oras, o que poderia ser tão difícil em guiar um carro? Afinal, já tinha visto seus vizinhos dirigindo milhões de vezes, sabia as funções dos dois pedais... aquilo realmente não devia ter segredo nenhum!)

Enfim, embarcou no carro. Sentia-se num turbilhão de sensações - medo e ansiedade, alegria e êxtase. Não conseguia esconder a inquietação. Prendeu a respiração e deu a partida. Ah, que som maravilhoso! Aquele motor roncava em seu coração, cantava em seus ouvidos. Engatou a primeira marcha, inebirado por aquela indescritível sensação de poder. Acelerou suavemente. E sorriu. Aquilo era libertador! Mirou na garagem e gentilmente aproximou-se dela. O serviço estava transcorrendo brilhantemente.. Quando, de supetão, acelerador e freio obscuramente pareceram inverter-se e a poderosa máquina deu uma guinada, desembestando sem controle morro abaixo. (...)

E foi assim que, de carro e tudo, ele acabara de atravessar a sua primeira parede. E foi desta forma que o automóvel da Dna. Mimi viu o Rio Itajaí Açú de camarote, pendendo para a frente e para trás, como gangorra, preso nos escobros pelo meio do chassi. E foi assim sua primeira vez. Inesquecível. Não exatamente pelos motivos que ele vislumbrara sua vida inteira. Mas ainda assim... inesquecível.

segunda-feira

Lembranças voláteis eventualmente retornam


Este conto é especialmente dedicado àqueles que acham que as pessoas de antigamente eram sérias, sóbrias e recatadas o tempo todo, quase que sisudas e em tons sépia. Até eram. Mas nem sempre...

Dentre tantas lembranças de sua tenra infância, uma em especial - absurda! - lhe vem à mente, de repente, sem aviso. Certa vez lhe disseram que a vida é feita de "nadas", que é aí que está a beleza de viver. Não sabia bem ao certo porque aquilo voltara à sua memória, mas tinha certeza que aquele era um "nada" que lhe trazia à presença seu riso solto e verdadeiro de criança... 

... ou melhor, sabia sim! Ele acabara de passar de carro pelas redondezas - quase nove décadas mais tarde - e a casa já não estava mais lá. Mas a lembrança de tudo o que representava estava muito acesa e o fazia explodir, por dentro, em uma gargalhada repleta de imagens e sons.

Nos anos 1920, tinha apenas 6 para 7 anos e, como filho mais velho, era o companheiro de seu pai em todas as jornadas. Seu pai era professor. O primeiro da pequena cidade de interior. Sua escola ficava no centro da localidade. Mas há 12 km existia uma comunidade inteira ávida de saber e sem condições de percorrer o longo trajeto. Como a família possuía uma carroça, quem se deslocava era "papai". E ele ia junto. E assim sucedeu dias, semanas, meses. Até que papai fez amizade com os pais dos alunos locais. A partir daí, os dias ficaram mais longos e a volta para casa retardada para horários um pouco mais avançados... E como aquele pequeno gostava de ficar brincando com as crianças da região! Os adultos jogavam cartas, conversavam bobagens, riam alto, comiam, bebiam, alegres. As crianças, em volta, ocupavam-se de suas brincadeiras. Foi uma época boa que voltou-lhe como um filme à memória.

Com um carinho todo especial, lembrou-se dos primos Spengler - Antônio e Alberto, que não podiam se ver que já estavam fazendo palhaçadas. Os dois não podiam ficar sérios e nem deixar ninguém à sua volta de cara amarrada. E, naquele dia, em especial, sentados à mesa e jogando com papai, as crianças deleitaram-se com sua performance absolutamente gasosa e inusitada.

Decidiram, os primos, que iriam fazer um campeonato de peidos (não consegui achar uma palavra mais polida para a história que descreverei a seguir, desculpem!). Anunciaram solenemente, o início da competição. E Alberto tomou a liderança. E Antônio não deixou barato. Jogaram mais uma rodada do carteado. Desta vez foi Antônio que desafiou. E Alberto seguiu-o, prontamente. E o jogo continuava rolando até que Antônio juntou toda sua força interior para confrontar o primo. E subiu no banco, apontando Alberto em tom jocoso: "Ahá! Perdeu!!!" Foi então que, neste momento, Alberto jogou as cartas na mesa, respirou fundo, subiu na mesa e gritou "Coroem agora o seu rei!". A cena a seguir virou lenda urbana e é um misto de surrealismo e incredulidade que marcaram para todo o sempre sua jornada por esta Terra...

Tanta coisa boa para lembrar dos primos Spengler - rapazes trabalhadores, com seus engenhos de açúcar, boníssima gente, amigos de verdade, comprometidos com sua comunidade... de tantas memórias construtivas e de admiração... é justamente esta noite flatulenta que lhe volta à mente - de repente... entre tantas outras imagens... foi aquela a eleita para emergir depois de 85 anos, diretamente de sua infância dourada.

domingo

Entre exclamações e interrogações



Numa sociedade na qual o homem não podia calçar sapatos fechados antes de sua Confirmação* ou calças compridas antes dos dezoito anos, o início da vida produtiva era um grande marco. Aos 15 anos, ele estava orgulhoso, pois começara a trabalhar na Loja de Secos e Molhados da Sra. Maria Cândida Hoersch (Dna. Mimi, como era conhecida na pequena cidade). Era bem verdade que ele trabalhara desde pequeno vendendo os produtos da queijaria da família, passando de carroça por toda região... mas este era o seu primeiro emprego propriamente dito. Ele suava a camisa colocando o açúcar ao sol para dourar... pesava cereais e outros grãos para os clientes... limpava a loja e a organizava, recebia as mercadorias, fazia o controle financeiro do estabelecimento... e estava absolutamente feliz e cheio de si no desempenho de suas funções. Num certo dia, sem qualquer aviso, Dna. Mimi o chamou ao escritório e lhe disse, sorridente: "Aqui está o seu primeiro salário, você trabalhou bem e estou feliz de tê-lo aqui em nossa loja." Seus olhos brilharam, estava radiante. Eram 50 mil réis! Nem sabia direito quanto valia aquele dinheiro ou o que faria com ele... mas estava esfuziante... Era o seu primeiro salário. Pediu licença para ir para casa mostrar a conquista para os pais. E saiu voando baixo na sua bicicleta. Estava iluminado quando estendeu o montinho de dinheiro para mostrar ao pai.

- O que tu pensas que estás fazendo com esse dinheiro?" - ralhou o pai, em alemão.

- Ganhei da Dna. Mimi... é o meu primeiro salário! - respondeu incrédulo com a reação do pai

- Pois devolve agora! Tu não mereces isso! Volta lá e diz que teu pai mandou devolver!

- Mas...

- Sem mas. Agora! Onde já se viu?!

Baixou a cabeça e voltou à mercearia, resignado. Afinal, "papai" disse, é lei.

- Dna. Mimi - granhiu, segurando o choro - meu pai mandou devolver este dinheiro à senhora.

- Mas como... tu trabalhaste por este dinheiro, tu mereces ele... Teu trabalho vale três vezes mais, mas a loja não vai muito bem, então é o que eu posso te dar agora.

- Mas meu pai me disse que eu deveria devolver e que não mereço recebê-lo. Eu insisto! - baixou a cabeça e estendeu o dinheiro

- Não, não aceito. Fazes um belíssimo trabalho aqui, por isso eu quero que tu fiques com ele.

E não disse mais nada. Colocou o dinheiro no bolso e saiu pensativo. Voltou pra casa e subiu para seu quarto. Sentou à cama e colocou o dinheiro espalhado sobre ela. O que ele faria agora? Falaria para "papai" que não conseguira devolver o dinheiro? Como daria essa notícia a ele? E qual sua reação? Porque "papai" estava sendo tão duro com ele? Não conseguia pensar nas respostas. Em meio a pontos de interrogação e notas de cinco mil réis, adormeceu... O sono dos justos.

* Na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), da qual o menino faz parte, as crianças são batizadas nos seus primeiros meses de vida. No batismo Deus afirma que nos recebe como seus filhos. Na adolescência, toma-se consciência desta dádiva e após uma preparação, cada qual faz a sua profissão de fé pública perante a comunidade. Chama-se CONFIRMAÇÃO, pois para confirmar é preciso que algo tenha sido afirmado.

sábado

A primeira vez de um homem (parte 1)



(Não importa a idade ou a época: existem certos conceitos que, simplesmente, são fato. E, certamente, o fascínio dos meninos pelos carros é um deles. )


Lá pelos idos de 1927, um garotinho de 10 anos suspirava, sentado no meio-fio da rua principal da cidadezinha onde morava. Algumas pessoas já haviam adquirido a recém-chegada "coqueluche do momento": os automóveis. "Só papai não" - pensava consigo, o frustrado menino. A família até tinha condições de ter um - a queijaria ia bem - mas "papai" não quisera curvar-se às novidades da vida moderna. Sendo assim, restava ao menino olhar, maravilhado, os exemplares que, vagarosamente, desfilavam a sua frente, enquanto suspirava.

Seus pensamentos voavam longe quando um chamado o despertou: "Vamos lá! Está na hora do nosso passeio!" E seguiram em silêncio, pai e filho, na carroça da família, até a escola - da qual "papai" era o professor. Já com o restante da turma a bordo, seguiram para o piquenique. Com o local escolhido e a toalha já esticada - embaixo de um frondoso pé de ingá - o menino logo se prontificou a subir nele para derrubar um galho carregado da deliciosa fruta. Então, com o facão preso ao elástico da bermuda, iniciou a escalada. Várias galhadas acima, sacou-o e golpeou o galho, que caiu ao chão repleto de ingás, para deleite da petizada. A descida acontecia tranquilamente quando, no último lance de galhos pisou em falso. E o pior aconteceu: o facão (sem bainha) preso à bermuda felizmente não o cortara, mas a queda quebrou o seu braço em vários lugares. E "papai" correu para chamar o Sr. Pavlovsky, proprietário de um novo e poderosíssimo carro. E este, imediatamente, prontificou-se levar o menino para o hospital da cidade vizinha.

Foi quando a dor e o sofrimento do menino, com o braço seriamente machucado, tornaram-se secundários diante do deslumbre pela possibilidade de realizar seu sonho de - pela primeira vez - andar numa daquelas novidades da vida moderna pela qual ele tanto suspirava. E foi a meia hora mais marcante da sua infância.

domingo

Minha bela namorada


Naquele dia, ele chegou em casa com um sorriso diferente: com as mãos escondidas atrás de si, parecia aquele garoto que acabara de aprontar uma traquinagem. E de fato, o fizera. 

Perguntou a ela qual mão ela escolheria. Já rindo da situação, ela escolheu a esquerda. E lá estava um pacotinho, muito bem embrulhado, daquela loja de cosméticos famosa. Estendeu-o, enquanto abria um largo sorriso. E ela estava enternecida, mas não entendeu o porquê daquilo tudo.

- É que hoje de manhã, voltando dos bancos, eu entrei nesta loja. E falei às vendedoras que queria comprar um presente bem lindo para a minha namorada. Expliquei que ela sempre se fazia cheirosa para mim e que eu queria alguma coisa bem especial para presenteá-la... E percebi que as duas me olhavam incrédulas, com aquela cara de quem já pensava "que velho bobo, deve ter sido enganado por alguma jovenzinha interesseira!"... Foi quando provoquei elas mais e disse a elas que a minha namorada era a mulher mais linda e mais especial do mundo inteiro e ela era muito importante para mim porque me fazia feliz há mais de 60 anos e que, por isso eu queria levar para ela um presente especial, na volta do trabalho.

- Mas a troco de que tudo isso? - perguntou, já que ele não fazia muitas declarações como esta

- Porque hoje é o dia dos namorados, oras! E eu queria trazer um presente especial para a minha namorada que há tanto tempo se arruma tão linda e perfumada só para mim.

E não trocaram mais nehhuma palavra. Mas entreolharam-se longamente. E o olhar cúmplice deflagrado, ostentou o mesmo brilho de quando o fizeram pela primeira vez. Há mais de 60 anos.

Um singelo start


Ao embarcá-lo no carro, eis que surge a moça da recepção, esbaforida. Tínhamos acabado de colher um exame de sangue e já íamos para casa.

- Desculpe a minha confusão... mas acho que anotei sua data de nascimento errado...

- Aposto que não - responde ele com um sorriso sarcástico e espirituoso.

- Acredito que sim: coloquei aqui 1916!

- Pois garanto que anotou certo: 11 de novembro de 1916... Mas entendi sua estranheza: estou tão jovem e conservado que pareço de 1918!

sexta-feira

Projeto em andamento...

... que anda meio paradinho por várias questões pessoais e profissionais... é uma pena... mas logo quero ver se consigo retomá-lo... Isso porque tenho uma caixa cheinha de contos já prontos só aguardando serem publicados aqui e outras tantas páginas com anotações e mais anotações de memórias, nomes, causos e histórias fantásticas que - juro! - aconteceram! Assim que for possível, novas postagens serão feitas aqui... mas por enquanto... divirta-se com as já publicadas! Um abração, Bethania

quinta-feira

Uma homenagem a minha cidade

*** Sei que este post foge um pouco do foco/propósito deste blog... Mas a homenagem que produzimos para a RBS TV neste aniversário de Blumenau ficou tão bonita que merecia ser compartilhada. 

Música by Banda Cavalinho / Produção: Spry Vídeo / Texto: Bethania Guenther / Veiculação: RBS TV -- veja este post também no site www.spryvideo.com

Que cidade é essa que nasceu das mãos abnegadas que lenta e penosamente semearam tenacidade, empreendedorismo e energia, vislumbrando um amanhã digno e promissor para sua prole?

Que cidade é essa, voltada para a inovação, que implantou as primeiras indústrias, que trabalhou, incansável, fugazes planos... que perseguiu objetivos, que fez sua voz soar mais alto, que viu suas vielas transformarem-se em avenidas e que aprendeu a fazer a diferença?

Que cidade é essa, lavada pelas águas que, castigada, não esmoreceu... ao contrário, reconstruiu-se, redescobriu-se, reinventou-se e plantou nos que testemunharam, incrédulos, mais um duro golpe sofrido, a semente da persistência, da esperança e da solidariedade entre os homens?

Que cidade é essa, que ergue-se no Vale, com jeitinho de Europa, com ares de amor à primeira vista, que preseva a ferro e fogo as delícias da casa da vovó - a melodia, o canto, os ritmos, as cores, os cheiros, o abraço apertado, a própria identidade: tradição com pinceladas de vida moderna. Gostosa. Charmosa. Culta. Inesquecível. De braços abertos?

Que cidade é essa, do povo batalhador... loiro, castanho, mulato, amarelo... que vive e sobretudo convive, acolhendo todas as raças e credos, priorizando a harmonia... que chora unido, que brinca, que sorri, que brilha, vencedor e ilumina e emociona?

Que cidade é essa, única, úmida, ímpar, plural... onde o coração pulsa mais alto?

Essa, minha gente, é a minha cidade... encantada... da curva do rio... da natureza sem igual... da beleza exuberante, estonteante, cativante!

Essa é a minha cidade. Minha multicolor e multiamor... Blumenau!

terça-feira

Tempos modernos - e chega o cinema


O cinema já havia sido inventado há algum tempo, mas cidadezinhas de interior de um país recém colonizado não eram exatamente os primeiros lugares em que a modernidade costumava aportar. (Embora possa-se dizer aliviado que "antes tarde que mais tarde"!)

O Sr. Holzwarth foi pioneiro em trazer seu cinema itinerante para diversas comunidades da região. E sempre que chegava a sua caravana, a cidade entrava em festa! Pessoas curiosas ansiavam por ver como era aquilo que tantos falavam, alguns receosos pelo que estariam prestes a testemunhar, enquanto outros praguejavam a captura da alma das pessoas por aquela máquina. 

Naquela época, os "enlatados" que o senhorio trazia eram os bang-bangs. E, como os filmes eram mudos, era costume contratar músicos da localidade para fazer um fundo musical para a película.

Papai apressou-se em oferecer seus préstimos e de seu filho para tocarem violino nas sessões. Garantiu ao Sr. Holzwarth que, apesar dos 10 anos recém completados, ele era um excelente violinista. E, de fato, era. Pois se tinha uma coisa que papai ensinara-lhe bem era como encantar as pessoas com seu violino companheiro. E conseguira, assim, seu primeiro emprego: como violinista nas sessões do cinema itinerante.

Três, dois, um. Trouxeram um repertório bem organizado de marchinhas e valsas - que era o que se tocava nos westerns da época. (!) E puseram-se os dois a tocar para uma plateia repleta. A primeira canção, a segunda... e as primeiras imagens começaram a surgir na tela: o menino maravilhou-se com a coisa mais bonita que já vira na vida. Boquiaberto, petrificado, sem ação, absolutamente entregue, ele estava hipnotizado. Logo sentiu um cutucão do pai, trazendo-o de volta à realidade. Novas notas, nova música.. e logo tinha atrasado novamente o compasso até que seu violino, mais uma vez, emudeceu. E ele ali, encantado com o que via. Ouviu alguma coisa ao fundo, como um sussurro ríspido, meio confuso e abafado, mas não conseguia prestar atenção em som algum, mirava apenas naquelas imagens que pareciam estar em câmera lenta, parecia que só havia ele e a tela no salão, tamanha a sua beleza e poesia.

Voltou a si quando percebeu que o sussurro ríspido e abafado era na verdade o Sr. Holzwarth bufando em seu cangote, distituindo-o em definitivo do cargo de violinista de cinema itineirante. 

E foi assim que, além do seu primeiro emprego, conseguira, também, a sua primeira demissão!

quinta-feira

A cordialidade no seu sentido bíblico


A noite estava bela e iluminada por uma lua cheia de rostos sorridentes, histórias absurdas e acordes de músicas alegremente entoados entre copos de cerveja que tilintavam à saúde dos presentes. Como eram agradáveis os encontros entre amigos!

Voltavam os recém-casados, faceiros, para sua bela casa adquirida há pouco. Pé ante pé, abraçados, cantavam as marchinhas de outrora e riam-se, despreocupados. Como eram agradáveis os encontros entre amigos!

A porta da frente entreaberta fez um frio descer-lhes a espinha. Entreolharam-se, sérios. A alegria tornara-se apreensão. Fez sinal para que ela fizesse silêncio e ficasse do lado de fora, aguardando seu sinal. Pé ante pé, cuidadosamente, fiscalizou cada cômodo da casa, atônito com a situação que vivia naquele momento. Ouviu passos. E seguiu-os, corajosamente até o andar de baixo. Escondeu-se atrás do batente da porta. Iria surpreender o invasor: "Mas como?", pensou, já que não tinha nada nas mãos ou ao alcance delas. "Seja o que Deus quiser!", suspirou consigo. Agora estavam perto! E mais perto! Os passos! Estavam vindo em sua direção! Tomou fôlego e subitamente, saiu gritando raivoso em direção ao barulho. "Aaaaaaaaaaaaaaah!", seguido de um grito histérico feminino. 

Ela não aguentara o medo de ficar lá fora sozinha... de mãos dadas, inspecionaram novamente os cômodos e perceberam que, apesar da bagunça, nada tinha sido levado. Já recompostos do choque aperceberam-se que, em cima da mesa da sala de jantar, estava um bilhete escrito a punho pelo ladrão. Dizia: "Não valeu a pena."

Entreolharam-se mais uma vez, incrédulos, respiraram fundo e soltaram uma gargalhada. Numa época em que a cordialidade e o cavalherismo contava e eram levados muito a sério, até assaltante tem a delicadeza de deixar um singelo bilhetinho antes de sua fuga.

domingo

A AHUA do Tio Alvin



O Tio Alvin foi para Florianópolis estudar odontologia. Formou-se dentista e casou-se com a Tia Érika. Todos gostavam dele, pois era muito bem-humorado – adorava uma bagunça! E gostava de dormir. Aliás, toda família tinha fama de Langschläflich (dorminhocos) desde sempre: enquanto vizinhos acordavam às 4h da manhã para iniciar as tarefas, ali nunca tinha ninguém acordado antes das 7. Fazendo jus à tradição familiar, às vezes, o paciente já estava aguardando no consultório enquanto a Tia Érika tinha dificuldades de acordá-lo.

Mas era um filho dedicado: vinha visitar os pais com bastante assiduidade, apesar da viagem penosa: saía de Mafra com sua família bem cedinho, pela manhã, e chegava a Pomerode somente à noite, viagem que hoje leva pouco mais de uma hora e meia. Em meados de 1940, comprou um Ford A. E, quando vinha, já buzinava escandalosamente desde lá de longe e, assim, os primos e sobrinhos pequenos já corriam para fora festejando sua chegada, gritando empolgadamente para os adultos: “Lá vem a AHUA do Tio Alvin!”. O apelido “Ahua” surgiu do som que a buzina que o automóvel fazia. Por ironia do destino, num fatídico dia 31 de dezembro, foi atropelado por uma “ahua” dirigida por três rapazes que festejavam o dia de São Silvestre (ano novo), em frente de casa – foi um dos maiores choques que a família já teve. A casa foi vendida em seguida, pois sua viúva não conseguia olhar para fora sem lembrar do acidente. 

Fatalidades e dramas familiares levam anos (ou gerações) para cicatrizar... mas as doces lembranças das gritarias e da alegria pela visita do Tio Alvin com sua AHUA ecoam reluzentes - e barulhentas - na memória de quem fica.

segunda-feira

Singelo como uma rosa roubada


Então ele veio ao Brasil. Fora chamado para trabalhar como professor na nova colônia. Juntamente com sua mãe viúva e sua irmãzinha, trouxe consigo poucas mudas de roupa, livros, nenhum dinheiro e a vontade de fazer uma vida digna na nova pátria. E assim o fez. Era agradável, solícito e dividia seu saber com toda a comunidade. E era reconhecido, muito bem-quisto e respeitado. Mas parecia faltar-lhe algo.

Foi aí que ele a viu pela primeira vez, quando pôs-se a participar de um seminário na cidade vizinha. Lá estava ela iluminada, ostentando aquele sorriso lindo enquanto cuidava de seus afazeres na casa onde era contratada. Parou, por um momento, de respirar. E passou muitas vezes na frente daquela janela, na esperança de vê-la novamente. E voltou à cidade inúmeras vezes na intenção de encontrá-la.

E ela passava os dias à janela à espera de sua visita. Nunca haviam se falado. Faltava coragem. Mas miravam-se longamente... Um dia ele não a encontrou e voltou para casa desapontado... mas não antes de pular a cerca, sacar uma rosa branca - roubada - do jardim e deixá-la na janela. Naquela janela, que emoldurava tão bela visão. E ela passou a esperar as rosas brancas, quando não conseguia vê-lo. E encantava-se. Sonhava. Suspirava.

E dos olhares (ou dos desencontros), iniciou uma belíssima história que se renova sempre e que não terá final jamais. Da singeleza das delicadas rosas deixadas ao parapeito da janela, nasceu toda uma família*. E, desta trajetória, fica o perfume do mais puro sentimento que brota sem aviso, tomando, de uma hora para outra todo nosso ser... na hora certa... quando tem que ser... dentro de cada um de nós.


*casaram-se em 1881 e hoje seu romance já alcança a 7a geração.

Escoteiro, herói!


Na década de 20/30, ser escoteiro era uma grande honra. Enquanto participavam do movimento, o rapazes da pequena cidade aprendiam sobre a sobrevivêcia na mata, tinham noções de civismo e vivenciavam em sua plenitude o compromisso com a comunidade na qual estavam inseridos. E ele, como bom escoteiro, tinha seu lenço, seu pavihão amado, que traduzia tudo o que de melhor o indivíduo podia ser. Acordava todos os dias de manhã e lá estava ele, pendurado à beira da cama. Quando uma boa ação fosse cumprida, fazia um nó no lenço. Era objetivo de todo escoteiro que, ao se deitar, seu lenço tivesse pelo menos um nó. E o dele tinha vários. E orgulhava-se muito disso.

Lembranças de um tempo de amizades, companheirismo e muitas, muitas aventuras... Um evento memorável, que parava sua cidadezinha, era o Raid, uma jornada na qual dois escoteiros tinham a honra de ir caminhando até a capital: uma prova de bravura, superação de limites e força de vontade dos participantes - afinal, são mais de 130 Km de chão batido, com uma mochila gigante nas costas. Por esta razão e por serem "os escolhidos" e não meros voluntários, já na ida, esses escoteiros eram tratados como celebridades. A cidade inteira participava de sua partida e reunia-se em salões paroquais para aguardar notícias. E elas vinham... o exército auxiliava os aventureiros, dando cobertura e telefonando para uma central na cidadezinha. E a pessoa que recebia as informações corria até o salão onde todos esperavam ansiosos pelas novas. Orações e muita torcida tomavam o espaço até o derradeiro telefonema: eles chegaram a Florianópolis! Chapéus para o alto, festa, comemoração. Os mais novos heróis da cidade agora poderiam voltar - de carro - para serem coroados com toda pompa e circunstância. E assim o eram. Quando em casa, eram ovacionados e seguiam em desfile público aos aplausos da multidão - eles eram os maiorais!

Este era um feito tão penoso e desafiador que era repetido somente a cada três anos, por anos a fio... até que a tradição passou a não acontecer mais. Faz parte de uma série feitos que, simplesmente, passaram... Passaram! Mas deixaram uma marca profunda. Porque, independentemente de participar da jornada ou ficar somente no aguardo de notícias... era um sofrimento absolutamente gratificante, aquele!!!

quarta-feira

O louco, a caderneta e o sussurro



Estava decidido. Era ela! Foi amor à primeira vista: na primeira vez que ouviu falar dela, quando foram apresentados, ao primeiro contato, desde a primeira vez que a adentrou. Tinha que ser ela. Estava decidido. Custasse o que custasse. Sacrifício, preocupação, dinheiro, dificuldades. Era ela! Seu superego dizia-lhe que era loucura, mas ele não dava bola. Só conseguia pensar - o tempo todo - nela. Seria sua. Mas... como?! (Àquela altura, isso era apenas um mero detalhe!)

Vestiu-se com seu melhor traje e foi reunir-se com o Sr. Smalz, da Construtora Catarinense. Faria-lhe uma proposta suicida. O depois não importava. E mergulhou. De cabeça. (Louco!)

- Tenho 9 nove contos de réis, pago-lhe à vista. O resto, pago aos poucos.

- Nós não financiamos. Preciso dos 25 contos agora.

- E eu, da casa. E ofereço os meus 9 contos como entrada.

Entreolharam-se, sérios. E o Sr. Smalz percebeu que aquele jovem teimoso não cederia. Via nele uma determinação desvairada em ter a propriedade no Beco Timbó, número 150. Respirou fundo e decidiu confiar no garoto. Avalizou pessoalmente o financiamento a ele, em prestações muito maiores que seu salário poderia cobrir. Entretanto ele, ensandecido pela possibilidade real de ter a casa, fechou negócio.

Saiu de lá radiante. Conseguira a casa. A sua casa. Digna de sua amada. Flores, luz, música, uma brisa suave batendo em seu rosto... Um lugarzinho para chamar de seu. Na qual teria uma vida inteira de muita felicidade. E de economia. E de sacrifício. E de preocupação. E de desespero! Pelo amor da Josefina! O que ele acabara de fazer?! Onde estava com a cabeça?! Como é que podia ter gasto suas economias de 10 anos de trabalho árduo e sobre-horas em uma casa que não podia comprar? Mas como ele tinha deixado se levar?! O que ele tinha feito!? E, se conseguisse pagar as prestações, como sustentaria a casa? E como sustentaria sua esposa? E seus filhos - aqueles que um dia teria com ela?! Sentou à beira da estrada e, simplesmente, chorou.

Rolou na cama por dias, não conseguira, ainda, sequer verbalizar o que tinha feito. E, numa epifania, eis que surgia de sei-lá-onde uma idéia que era tão absurda quanto a compra da casa. Decidiu tentar, esperançoso.

Comprou uma cadernetinha e uma caneta. E pôs-se a bater na porta dos vizinhos. Um a um. Explicava a situação e já traçava uma meta financeira. E desta forma foi conseguindo pequenos empréstimos - qualquer valor era bem-vindo - a serem pagos em longos prazos. E tudo foi anotado na cadernetinha. Clientes foram procurados com a mesma proposta - que era tão atrevida e inesperada que acabava convertida em mais cifras na caderneta. Em pouquíssimo tempo conseguira juntar 6 mil contos de réis, que já eram suficientes para cobrir as primeiras prestações. O sogro investiu no mobiliário completo da nova residência. Tudo do bom e do melhor para a primogênita - que, aos 27 anos, julgavam que não se casaria mais (em tempo: ela não gostou muito da escolha, pois a casa era grande demais e tinha muitas escadas, mas isso ele só ficou sabendo 50 anos mais tarde).

Trabalhou em horário dobrado, fez horas extras, arranjou empregos paralelos, candidatou-se para desempenhar pequenos trabalhos a quem precisasse. Foi pagando com bastante suor cada linha da lista - interminável. E as anotações da caderneta foram sendo riscadas uma a uma. (Ufa!)

No dia do casamento, seu pai fitava-o, orgulhoso. Em certo momento da festa, foi parabenizá-lo, abraçando-o longamente. E o inesperado aconteceu... Sussurrou em seu ouvido: "Te empresto os 12 mil contos que ainda faltam. Estou muito feliz de ver o homem que tu te tornaste. Honrado, esforçado, trabalhador. Assim tu não deves mais para ninguém e me pagas como podes, sem tanto sacrifício". E uma discreta lágrima escorreu-lhe pela face. Abraçaram-se, emocionados.

E foi assim que sua vida linda, florida e perfumada de homem casado começou: com a magia da salvação imprevista e com um abraço forte, com um significado todo especial. Seguiu anos economizando junto à esposa, sacrificando pequenos prazeres, com muita preocupação e alguma dificuldade. Mas pagaram cada prestação com um sorriso de gratidão no rosto.

E finalmente, a caderneta já não tinha mais uso. Mas foi guardada com carinho, como símbolo irrefutável de que, às vezes, podemos contar com a ajuda de pessoas que nem sequer em sonho imaginávamos... e que sempre estiveram lá, anonimamente, como expectadores, atentos e torcendo por nós. Tão perto e tão longe, bastando somente um chamado.

terça-feira

A primeira vez de um homem (parte 2)


Aos 16 anos, ele já trabalhava na loja de secos e molhados da Sra. Maria Cândida. E entre colocar o açúcar a secar ao sol e atender os clientes, ele acabara de ganhar uma nova atribuição: guardar o carro da patroa, ao final do dia, na garagem - que era um pouco afastada da vendinha. Aquilo seria o céu para aquele menino fascinado por automóveis. Estava ansioso pela sua primeira vez: ainda hoje ele teria um daqueles possantes em suas mãos só seu... mesmo que somente num pequeno espaço de tempo. Chegara o seu momento, aquele com o qual ele sonhara desde menino. E foi, heróico, cumprir a sua tarefa. Parou em frente ao lustroso e brilhante Ford A novinho e fitou-o longamente, absolutamente entorpecido pela beleza daquela máquina. Respirou fundo enquanto lembrava da conversa que teve pela manhã com a Dna. Mimi:

- Você tem certeza que pode? Sabe dirigir um carro?

- Com toda certeza! - respondera com segurança à patroa. (Oras, o que poderia ser tão difícil em guiar um carro? Afinal, já tinha visto seus vizinhos dirigindo milhões de vezes, sabia as funções dos dois pedais... aquilo realmente não devia ter segredo nenhum!)

Enfim, embarcou no carro. Sentia-se num turbilhão de sensações - medo e ansiedade, alegria e êxtase. Não conseguia esconder a inquietação. Prendeu a respiração e deu a partida. Ah, que som maravilhoso! Aquele motor roncava em seu coração, cantava em seus ouvidos. Engatou a primeira marcha, inebirado por aquela indescritível sensação de poder. Acelerou suavemente. E sorriu. Aquilo era libertador! Mirou na garagem e gentilmente aproximou-se dela. O serviço estava transcorrendo brilhantemente.. Quando, de supetão, acelerador e freio obscuramente pareceram inverter-se e a poderosa máquina deu uma guinada, desembestando sem controle morro abaixo. (...)

E foi assim que, de carro e tudo, ele acabara de atravessar a sua primeira parede. E foi desta forma que o automóvel da Dna. Mimi viu o Rio Itajaí Açú de camarote, pendendo para a frente e para trás, como gangorra, preso nos escobros pelo meio do chassi. E foi assim sua primeira vez. Inesquecível. Não exatamente pelos motivos que ele vislumbrara sua vida inteira. Mas ainda assim... inesquecível.

segunda-feira

Lembranças voláteis eventualmente retornam


Este conto é especialmente dedicado àqueles que acham que as pessoas de antigamente eram sérias, sóbrias e recatadas o tempo todo, quase que sisudas e em tons sépia. Até eram. Mas nem sempre...

Dentre tantas lembranças de sua tenra infância, uma em especial - absurda! - lhe vem à mente, de repente, sem aviso. Certa vez lhe disseram que a vida é feita de "nadas", que é aí que está a beleza de viver. Não sabia bem ao certo porque aquilo voltara à sua memória, mas tinha certeza que aquele era um "nada" que lhe trazia à presença seu riso solto e verdadeiro de criança... 

... ou melhor, sabia sim! Ele acabara de passar de carro pelas redondezas - quase nove décadas mais tarde - e a casa já não estava mais lá. Mas a lembrança de tudo o que representava estava muito acesa e o fazia explodir, por dentro, em uma gargalhada repleta de imagens e sons.

Nos anos 1920, tinha apenas 6 para 7 anos e, como filho mais velho, era o companheiro de seu pai em todas as jornadas. Seu pai era professor. O primeiro da pequena cidade de interior. Sua escola ficava no centro da localidade. Mas há 12 km existia uma comunidade inteira ávida de saber e sem condições de percorrer o longo trajeto. Como a família possuía uma carroça, quem se deslocava era "papai". E ele ia junto. E assim sucedeu dias, semanas, meses. Até que papai fez amizade com os pais dos alunos locais. A partir daí, os dias ficaram mais longos e a volta para casa retardada para horários um pouco mais avançados... E como aquele pequeno gostava de ficar brincando com as crianças da região! Os adultos jogavam cartas, conversavam bobagens, riam alto, comiam, bebiam, alegres. As crianças, em volta, ocupavam-se de suas brincadeiras. Foi uma época boa que voltou-lhe como um filme à memória.

Com um carinho todo especial, lembrou-se dos primos Spengler - Antônio e Alberto, que não podiam se ver que já estavam fazendo palhaçadas. Os dois não podiam ficar sérios e nem deixar ninguém à sua volta de cara amarrada. E, naquele dia, em especial, sentados à mesa e jogando com papai, as crianças deleitaram-se com sua performance absolutamente gasosa e inusitada.

Decidiram, os primos, que iriam fazer um campeonato de peidos (não consegui achar uma palavra mais polida para a história que descreverei a seguir, desculpem!). Anunciaram solenemente, o início da competição. E Alberto tomou a liderança. E Antônio não deixou barato. Jogaram mais uma rodada do carteado. Desta vez foi Antônio que desafiou. E Alberto seguiu-o, prontamente. E o jogo continuava rolando até que Antônio juntou toda sua força interior para confrontar o primo. E subiu no banco, apontando Alberto em tom jocoso: "Ahá! Perdeu!!!" Foi então que, neste momento, Alberto jogou as cartas na mesa, respirou fundo, subiu na mesa e gritou "Coroem agora o seu rei!". A cena a seguir virou lenda urbana e é um misto de surrealismo e incredulidade que marcaram para todo o sempre sua jornada por esta Terra...

Tanta coisa boa para lembrar dos primos Spengler - rapazes trabalhadores, com seus engenhos de açúcar, boníssima gente, amigos de verdade, comprometidos com sua comunidade... de tantas memórias construtivas e de admiração... é justamente esta noite flatulenta que lhe volta à mente - de repente... entre tantas outras imagens... foi aquela a eleita para emergir depois de 85 anos, diretamente de sua infância dourada.

domingo

Entre exclamações e interrogações



Numa sociedade na qual o homem não podia calçar sapatos fechados antes de sua Confirmação* ou calças compridas antes dos dezoito anos, o início da vida produtiva era um grande marco. Aos 15 anos, ele estava orgulhoso, pois começara a trabalhar na Loja de Secos e Molhados da Sra. Maria Cândida Hoersch (Dna. Mimi, como era conhecida na pequena cidade). Era bem verdade que ele trabalhara desde pequeno vendendo os produtos da queijaria da família, passando de carroça por toda região... mas este era o seu primeiro emprego propriamente dito. Ele suava a camisa colocando o açúcar ao sol para dourar... pesava cereais e outros grãos para os clientes... limpava a loja e a organizava, recebia as mercadorias, fazia o controle financeiro do estabelecimento... e estava absolutamente feliz e cheio de si no desempenho de suas funções. Num certo dia, sem qualquer aviso, Dna. Mimi o chamou ao escritório e lhe disse, sorridente: "Aqui está o seu primeiro salário, você trabalhou bem e estou feliz de tê-lo aqui em nossa loja." Seus olhos brilharam, estava radiante. Eram 50 mil réis! Nem sabia direito quanto valia aquele dinheiro ou o que faria com ele... mas estava esfuziante... Era o seu primeiro salário. Pediu licença para ir para casa mostrar a conquista para os pais. E saiu voando baixo na sua bicicleta. Estava iluminado quando estendeu o montinho de dinheiro para mostrar ao pai.

- O que tu pensas que estás fazendo com esse dinheiro?" - ralhou o pai, em alemão.

- Ganhei da Dna. Mimi... é o meu primeiro salário! - respondeu incrédulo com a reação do pai

- Pois devolve agora! Tu não mereces isso! Volta lá e diz que teu pai mandou devolver!

- Mas...

- Sem mas. Agora! Onde já se viu?!

Baixou a cabeça e voltou à mercearia, resignado. Afinal, "papai" disse, é lei.

- Dna. Mimi - granhiu, segurando o choro - meu pai mandou devolver este dinheiro à senhora.

- Mas como... tu trabalhaste por este dinheiro, tu mereces ele... Teu trabalho vale três vezes mais, mas a loja não vai muito bem, então é o que eu posso te dar agora.

- Mas meu pai me disse que eu deveria devolver e que não mereço recebê-lo. Eu insisto! - baixou a cabeça e estendeu o dinheiro

- Não, não aceito. Fazes um belíssimo trabalho aqui, por isso eu quero que tu fiques com ele.

E não disse mais nada. Colocou o dinheiro no bolso e saiu pensativo. Voltou pra casa e subiu para seu quarto. Sentou à cama e colocou o dinheiro espalhado sobre ela. O que ele faria agora? Falaria para "papai" que não conseguira devolver o dinheiro? Como daria essa notícia a ele? E qual sua reação? Porque "papai" estava sendo tão duro com ele? Não conseguia pensar nas respostas. Em meio a pontos de interrogação e notas de cinco mil réis, adormeceu... O sono dos justos.

* Na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), da qual o menino faz parte, as crianças são batizadas nos seus primeiros meses de vida. No batismo Deus afirma que nos recebe como seus filhos. Na adolescência, toma-se consciência desta dádiva e após uma preparação, cada qual faz a sua profissão de fé pública perante a comunidade. Chama-se CONFIRMAÇÃO, pois para confirmar é preciso que algo tenha sido afirmado.

sábado

A primeira vez de um homem (parte 1)



(Não importa a idade ou a época: existem certos conceitos que, simplesmente, são fato. E, certamente, o fascínio dos meninos pelos carros é um deles. )


Lá pelos idos de 1927, um garotinho de 10 anos suspirava, sentado no meio-fio da rua principal da cidadezinha onde morava. Algumas pessoas já haviam adquirido a recém-chegada "coqueluche do momento": os automóveis. "Só papai não" - pensava consigo, o frustrado menino. A família até tinha condições de ter um - a queijaria ia bem - mas "papai" não quisera curvar-se às novidades da vida moderna. Sendo assim, restava ao menino olhar, maravilhado, os exemplares que, vagarosamente, desfilavam a sua frente, enquanto suspirava.

Seus pensamentos voavam longe quando um chamado o despertou: "Vamos lá! Está na hora do nosso passeio!" E seguiram em silêncio, pai e filho, na carroça da família, até a escola - da qual "papai" era o professor. Já com o restante da turma a bordo, seguiram para o piquenique. Com o local escolhido e a toalha já esticada - embaixo de um frondoso pé de ingá - o menino logo se prontificou a subir nele para derrubar um galho carregado da deliciosa fruta. Então, com o facão preso ao elástico da bermuda, iniciou a escalada. Várias galhadas acima, sacou-o e golpeou o galho, que caiu ao chão repleto de ingás, para deleite da petizada. A descida acontecia tranquilamente quando, no último lance de galhos pisou em falso. E o pior aconteceu: o facão (sem bainha) preso à bermuda felizmente não o cortara, mas a queda quebrou o seu braço em vários lugares. E "papai" correu para chamar o Sr. Pavlovsky, proprietário de um novo e poderosíssimo carro. E este, imediatamente, prontificou-se levar o menino para o hospital da cidade vizinha.

Foi quando a dor e o sofrimento do menino, com o braço seriamente machucado, tornaram-se secundários diante do deslumbre pela possibilidade de realizar seu sonho de - pela primeira vez - andar numa daquelas novidades da vida moderna pela qual ele tanto suspirava. E foi a meia hora mais marcante da sua infância.

domingo

Minha bela namorada


Naquele dia, ele chegou em casa com um sorriso diferente: com as mãos escondidas atrás de si, parecia aquele garoto que acabara de aprontar uma traquinagem. E de fato, o fizera. 

Perguntou a ela qual mão ela escolheria. Já rindo da situação, ela escolheu a esquerda. E lá estava um pacotinho, muito bem embrulhado, daquela loja de cosméticos famosa. Estendeu-o, enquanto abria um largo sorriso. E ela estava enternecida, mas não entendeu o porquê daquilo tudo.

- É que hoje de manhã, voltando dos bancos, eu entrei nesta loja. E falei às vendedoras que queria comprar um presente bem lindo para a minha namorada. Expliquei que ela sempre se fazia cheirosa para mim e que eu queria alguma coisa bem especial para presenteá-la... E percebi que as duas me olhavam incrédulas, com aquela cara de quem já pensava "que velho bobo, deve ter sido enganado por alguma jovenzinha interesseira!"... Foi quando provoquei elas mais e disse a elas que a minha namorada era a mulher mais linda e mais especial do mundo inteiro e ela era muito importante para mim porque me fazia feliz há mais de 60 anos e que, por isso eu queria levar para ela um presente especial, na volta do trabalho.

- Mas a troco de que tudo isso? - perguntou, já que ele não fazia muitas declarações como esta

- Porque hoje é o dia dos namorados, oras! E eu queria trazer um presente especial para a minha namorada que há tanto tempo se arruma tão linda e perfumada só para mim.

E não trocaram mais nehhuma palavra. Mas entreolharam-se longamente. E o olhar cúmplice deflagrado, ostentou o mesmo brilho de quando o fizeram pela primeira vez. Há mais de 60 anos.

Um singelo start


Ao embarcá-lo no carro, eis que surge a moça da recepção, esbaforida. Tínhamos acabado de colher um exame de sangue e já íamos para casa.

- Desculpe a minha confusão... mas acho que anotei sua data de nascimento errado...

- Aposto que não - responde ele com um sorriso sarcástico e espirituoso.

- Acredito que sim: coloquei aqui 1916!

- Pois garanto que anotou certo: 11 de novembro de 1916... Mas entendi sua estranheza: estou tão jovem e conservado que pareço de 1918!